2 de julho de 2007

Pessoas



(banda sonora: Hallelluia - Jeff Buckley)

Quando era pequeno e ía pràs aulas de autocarro, estava sempre um senhor preto que saía uma paragem antes do meu colégio. De tanto me ver a mim e à minha irmã no autocarro, passou a oferecer-nos todos os dias um sorriso aberto, humilde e profundo como só os pretos sabem fazer. Acabámos por saber que ele trabalhava pra alguem que conhecia os meus pais. Tinha vindo com um soldado português no fim da guerra, e não sabia que idade tinha, nem quando fazia anos. Eu achava isso muito curioso, não saber que idade se tem :)

Era uma figura que transmitia imensa paz. Talvez fosse o sorriso, ou talvez a maneira especial como parecia estar no quotidiano. Não era como os passageiros que não sorriam. Formou-se uma certa cumplicidade entre nós, uma amizade silenciosa e passageira, que não queria nem precisava de crescer mais do que o passageiro que era. Uma presença simpática.

Sobre os africanos, descobri mais tarde que são mais intensos em tudo. Têm mais côr e mais ritmo. Quando são humildes são duma humildade que desarma, como o meu amigo. E por outro lado, quando são arrogantes são duma arrogância que choca. Descobri também que neste mundo não há só um mundo, mas vários, e que fomos nós, europeus, que fizemos as coisas assim. É inacreditável o tamanho da dívida que o chamado mundo ocidental tem para com África. Também não acredito que o mal seja por sermos europeus ou africanos, nem nada disso: o mau uso da liberdade é uma opção que foi dada à Humanidade, e se fosse ao contrário teria sido a mesma coisa, provavelmente. Mas calhou-nos a nós, e somos nós quem lhes devemos mais do que é possível a uma mente humana contabilizar.

Não voltei a ver o meu amigo silencioso, até o encontrar ontem, passada mais duma década, a servir na festa de um baptizado, com a mesma humildade e simpatia de sempre. Quando me viu deu-me o mesmo sorriso simpático de antigamente. Pensei que me tivesse reconhecido, mas quando lhe perguntei, deu-me um "ah, talvez..." muito diplomático. A única diferença era o cabelo completamente branco.

É engraçada a maneira como os caminhos se cruzam e recruzam :) Hoje, a escrever isto, estou a ouvir o "hallelluia" do Jeff Buckley. Outro dia lembrei-me que se lerem estes posts em ambientes diferentes do ambiente nocturno e sereno em que os escrevo, a sensação pode ser diferente. E depois começei a pensar que era giro que os livros, os cds, etc., viessem com uma indicação de como os tomar, como acontece com alguns vinhos. Pois bem, espero que tenham lido este post ao som de Jeff Buckley!

4 comentários:

n disse...

"...um sorriso aberto, humilde e profundo como só os pretos sabem fazer."

Lá porque os pretos têm melhor pele e dentes não significa que tenham os sentimentos mais puros e, menos ainda, que não haja também brancos que saibam fazer sorrisos humildes e abertos.
Também já tive amigos deste género, silenciosos.

Quanto às dívidas... não há quem não as tenha.
Antes de lá chegarem os europeus já os africanos se guerreavam e escravizavam entre si, entre tribos, imagino até que de forma mais descontrolada, caótica e por isso brutal.

Inês disse...

"e não sabia que idade tinha (...)"

estas coisas comovem-me, encontro-lhes beleza, apesar de, ao mesmo tempo, ser uma coisa naturalmente triste... ou não, talvez aí esteja a beleza que eu encontro, a capacidade de sorrir generosamente, não se sabendo há quanto tempo se sorri assim...

"amizade silenciosa"...*

Inês disse...

p.s.! e a música...:)*

patinho feio disse...

gostei muito, mais uma vez... o início está muito bonito com aqueles pormenores simples que fazem toda a diferença e o trocadilho com o "passageiro". quanto às indicações de toma a ideia era engraçada, mas acho que também podia ser "limitativa" porque ao ler a mesma coisa as pessoas sentem coisas diferentes não só pela envolvência mas porque as próprias pessoas são diferentes e essa é uma das grandezas das coisas e que faz com que acredite que há sempre algo para partilhar mesmo quando se viveu exactamente o mesmo. eu sei que dizia em cima (banda sonora: Hallelluia - jeff buckley) só não tinha percebido que era uma ordem e quando cheguei ao fim era tarde demais..:p