26 de dezembro de 2007

3 milagres de Natal

1. Havia uma rapariga, uma drogada - cujo nome não vou dizer, por respeito, embora muitos possam conhecê-la - que estava sempre nos semáforos do largo de Lordelo do Ouro numa cadeira de rodas a pedir dinheiro. Não era deficiente nem doente, mas ficou isso tudo por causa da droga. Essa rapariga sensibilizou-me especialmente, por várias razões. Primeiro, era linda de morrer e tinha imensa vida dentro dela, era rebelde, ousada. Depois, reconhecia sempre o carro que eu usava, que é da minha mãe, pois a minha mãe às vezes era simpática com ela. Sorria-me com cumplicidade, como quem diz: "tou a ver quem és, gosto de vocês." E eu ficava sempre com uma sensação de impotência e tristeza por dentro, por passar por ela sem fazer nada, em noites inacreditáveis de frio e chuva, e ela ali na cadeira. Às vezes estava lá só de olhos fechados, sozinha, sem reagir, da moca ou da doença, nem sei. Acho que para mim ela simbolizava aquilo que pode acontecer a uma pessoa perfeita que cai nos caminhos da vida. E não sei se há caír maior do que o dela.

Uma pessoa que nós conhecemos, a Mafalda, costumava dar-lhe apoio, e uma vez a minha mãe disse que ela estava no hospital Joaquim Urbano (de doenças infecciosas), a morrer. Fiquei com uma pena enorme, e nunca engoli bem o facto de assistir à queda gradual dela sem fazer nada. Que é que eu podia fazer? Não sei o que fazer, como lidar, nada.

De qualquer maneira, no Domingo passado vejo na missa onde costumo ir uma rapariga numa cadeira de rodas. Era ela! A Mafalda tinha-a levado para passar o Natal em casa dela, e estava com muito melhor aspecto. Nem queria acreditar!! Pensava que ela estava morta, não sei o que aconteceu, que doenças tinha das quais se safou, se recuperou da droga, não sei nada. Mas foi um milagre :)

2. Almoço de Natal. A minha mãe convidou três sem-abrigo para almoçar connosco. Uma quase não tem dentes, as unhas parecem carcaças de tão grossas que são, a cara tem a expressão da vida incrível que levou. Se calhar o caír dessa foi maior do que o da rapariga da cadeira de rodas. Outro é um alcoólico de 65 anos, e o terceiro é um brasileiro mulato que não teve a sorte que pensava que ía ter em Portugal. Esse tem um sorriso de criança, quando se consegue arrancar-lhe um sorriso, e é muito misterioso. Não se percebe o que lhe aconteceu, não conta, nem se pergunta. O dia estava cinzento, eu tinha sono, frio e fome, e só me apetecia comer. Não sabia bem se me apetecia muito estar ali com eles, mas gostei da iniciativa da minha mãe, e achei piada à situação.

Pensava eu, do alto da minha soberba, que ía dar alguma coisa, e eis que fui eu quem mais recebeu. Primeiro, o brasileiro pega na minha guitarra, e desata a tocar músicas brasileiras do sertão, que eu acho imensa piada, e animou ali a mesa num instante. O dia já não estava muito cinzento, e a distância entre nós já não parecia muita. A outra ria-se e fazia festa com o cão, e apesar de parecer tola, quando olhava para mim eu via nos olhos dela que não é nada tola e que sabia exactamente tudo o que a situação representava. O velho comia e bebia com um ar de satisfação relaxada. De repente não havia distância entre nós. Éramos amigos que partilhavam um momento, uma comida, um sorriso, sem disfarçes nem cerimónias, e eu senti-me feliz. Foi o milagre nº 2 :)

3. No fim do dia, já noite, antes do jantar, as nuvens e a chuva acharam que já chegava. Farto de estar em casa no dia de Natal, e sem nada que fazer, aproveitei. Peguei na mota e fui dar uma volta. Passei nas iluminações da baixa, e fui até à praia de Matosinhos, que estava gelada, quase deserta e escura. Os postes da avenida do mar abanavam tristes com uma nortada furiosa. Os prédios tinham luz nas janelas e via-se pessoas lá dentro no quentinho a saborear a companhia das famílias.

A maré estava vaza, e ao pé da água uma escuridão. Apeteceu-me apanhar mais vento nas trombas, e fui até ao pé do mar. Quando cheguei lá, os meus olhos habituaram-se à escuridão. A areia estava toda lisa sem pegadas, e com riscas de grãos de areia levados pelo vento. Via-se umas coisitas brancas a passear na areia molhada. Eram aves marinhas, sempre sóbrias, sempre vivas. O mar cheio de espumas brancas a rugir, vivas como as aves, e a linha do horizonte bem marcada contra a luz suave do céu. Ao longe, uns navios com as luzes acesas, e por cima, um céu lindo cheio de estrelas a brilhar. A esplanada e os prédios estavam longe do outro lado, e por trás a lua cheia linda, a nascer. Fiquei tempo q.b. a apanhar vento nas trombas. Tudo o que em mim não interessava foi com o vento, e lembrei-me duma coisa: a vida é hoje tão nova e cheia de possibilidades como no dia em que nasci. Milagre nº 3 :)

24 de dezembro de 2007

Natal 2007



"No Natal, o nosso espírito abre-se à esperança, ao contemplar a glória divina escondida na pobreza de um Menino envolvido em panos e reclinado numa manjedoura: é o Criador do universo, reduzido à impotência de um recém-nascido!
Aceitar este paradoxo, o paradoxo do Natal, é descobrir a Verdade que liberta, o Amor que transforma a existência.
Na Noite de Belém, o Redentor faz-Se um de nós, para ser nosso companheiro nas estradas insidiosas da história. Acolhamos a mão que Ele nos estende: é uma mão que não nos quer tirar nada, mas apenas dar."

Bento XVI (in mensagem da PUPS - Pastoral Universitária do Porto - Saúde)

Natal é isto que o Papa escreveu. E por causa disto, tornou-se também mais. Tornou-se símbolo de segurança afectiva. No Natal os corações têm tendência a abrir-se, e a lembrar-se daquilo que para cada um é o seu "quentinho" afectivo. A família, os namorados, as pessoas, o amor, a bondade. Pelo menos o meu tem essa tendência, e acho que não é o único.

E por causa disso, tornou-se também mais, e hoje em dia é muitas coisas para muita gente. E muitas vezes esquecemo-nos da primeira que originou todas as outras: Jesus, uma pessoa enorme que nasceu (e viveu) muito pequenina. E outras vezes esquecemo-nos também da segunda coisa: estar com os nossos entes queridos (e não só), perdoar os dissabores, confiar, entregar e voltar a unir.

Esta noite é mágica, sempre foi e sempre será. A magia não é mais do que o Amor, e hoje ele anda à solta. Desejo sinceramente que todos o deixemos entrar e sintamos a magia em nós.

Feliz Natal...

23 de dezembro de 2007

Querer e precisar

São coisas diferentes. Querer é amar, precisar não tem bem a ver com amor. Se eu preciso de alguém, então procuro essa pessoa para me dar qualquer coisa que me falta, e sem a qual eu sinto um défice em quem eu sou. Se eu quero estar com alguém apesar de não precisar dessa pessoa, procuro-a pelo que ela é, e não pelo que ela me acrescenta como pessoa. Aí é que começa o amor e acaba a confusão. A isto chama-se autonomia, que por sua vez é diferente de independência. Ser autónomo não é ser independente ou indiferente. Se eu amo uma pessoa, quero-a, apesar de não precisar dela. E se a quero, estou dependente de estar com ela, do que ela faz e do que lhe acontece, pois isso afecta-me, não me é indiferente.

Estas confusões entre este tipo de "conceitos" são difíceis de esclarecer em nós, pois são desenvolvidas pelas nossas experiências desde a infância, e estão na forma de sensações pouco conscientes. Mas quem cresce e vive num ambiente de amor saudável, tem-nas bem arrumadas naturalmente, sem ter que pensar nisso. Quem não teve essa sorte, ou vive experiências fortes de amor saudável que lhe ensinem isso automáticamente, ou tem que tornar essas coisas conscientes para compreendê-las e mudá-las.

22 de dezembro de 2007

Mmm... é tão bom estar deitado a ouvir um cd e perceber que távamos a dormir quando o silêncio nos acorda depois do cd ter acabado...

19 de dezembro de 2007

Tempestade

Tempestade lá fora e tempestade cá dentro. De mim. Há dias que parece que o peito não me chega. E se depois me ponho acordado até às tantas, o dia seguinte é uma merda. E vou por aí fora até fazer alguma asneira cujo arrependimento me devolva a calma. Pareço um cão. Mas também não queria ser doutra maneira, gosto de cães. Resolvem os assuntos na hora, e sabem lamber as feridas. Têm amor-próprio e não são complicados. Mas há dias assim. Apetecia-me estar aí. No fundo és tu a minha tempestade. E bem mais bonita que a de lá de fora, que já é bem bonita. Mas essa está aqui, tu não. E é não estares a minha tempestade, pois quando te vejo sou lua cheia. Talvez se não fosse te visse mais. És cadela que precisa de lutar pela carne. Corações estranhos os nossos... não sabem descansar um no outro. Talvez seja melhor assim. Resta-me a escrita. Graças a Deus pela capacidade simbólica.

16 de dezembro de 2007

Fernando Pessoa é um mundo. É um universo, uma maneira de ver e de sentir.
Já não me lembrava disso, e por isso fiquei pasmado a ouvi-lo no teatro de São João.
Fernando Pessoa estava muito à frente do tempo dele, e por isso devia ser muito sozinho.

Quem gosta não perca, aqui.

E aqui um cheirinho:

"Eu não tenho filosofia; tenho sentidos...
Se falo na natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe porque ama, nem o que é amar...

Amar é a primeira inocência,
E toda a inocência é não pensar..."

15 de dezembro de 2007

Quando se trata de coisas que vivem, em tudo o que faz parte delas há mensagens, significados, comunicação. Tudo diz alguma coisa, de alguma maneira, e a alguém.

Psicologia não é mais do que descodificar esses sentidos, perceber o que cada coisa em cada pessoa diz, a quem, e de que maneira. Se durmo muito ou pouco, se tenho os olhos abertos ou fechados, se gosto de árvores ou de carros, tudo isso diz coisas, e é lido de maneiras diferentes por pessoas diferentes.

Normalmente, é como se tivéssemos películas, véus por cima dos olhos que nos turvam a visão. Perceber as mensagens é como levantar véus e ver as coisas com outros olhos, ou melhor, com os mesmos olhos, mas lavados.

2 de dezembro de 2007

Dás cabo de mim. Se tudo fosse como tentam pintar, com coisinhas que tentam encaixar em prateleiras que tentam arrumar para dizerem que são isto ou aquilo... se eu precisasse das lentes que precisam e que se esforçam por engrossar para tapar a vista que não querem suportar... talvez também te quisesse arrumar e encaixar, pintar e engrossar. Mas não. Como é que não me vês? Tenho mesmo que trazer uma bandeira que não sou? Tens mesmo que meter na tua prateleira coisinhas que te digam o que queres que eu seja? Se vestisse a tua roupa ficavas satisfeita? Dás cabo de mim. Se pudesses largar os teus planos virtuais, as tuas lentes e prateleiras, vias-me como sou. Não tenho planos nem amanhãs. Não gosto de prateleiras e bandeiras, nem de quadros pintados por olhos apagados. Sou o que sinto. Venho despido, não vazio, mas não me vês à tua frente. E a ti, consegues ver? És linda de morrer, mas não sabes o que é viver. Dás cabo de mim.