2 de maio de 2008

O grito


Há um pássaro, deve ser uma coruja, no bairro grande de casas ao lado do meu prédio que vai do Campo Alegre até à Boavista, que solta um grito à noite. Uma nota só, meio aguda, forte, intermitente, lenta e misteriosa: "pii... pii... pii...". O som percorre todo o bairro, sem se perceber exactamente de onde vem, irrompendo sobriedade enquanto tudo repousa passivamente.

Parece uma espécie de espírito, uma voz no meio da noite que alerta para alguma coisa, ou para o facto de estarmos vivos. Provavelmente desperta quem a ouve sem intenção nenhuma de o fazer, mas só por ser o que é: energia vital. Limita-se a fazer o mesmo que os seus antepassados têm feito desde que este bairro e toda a cidade eram natureza selvagem cheia de mato e árvores.

Entretanto, nós humanos fomos mudando e perdendo um certo grito interior que vinha do mais profundo de nós, das nossas raízes ancestrais primas de todos os outros seres vivos. Mas graças a Deus houve um desses nossos primos que sobreviveu o suficiente para me vir acordar no meu bairro, na minha vidinha e no meu sedentarismo. E que me acorda, acorda mesmo.

Não sei se é a energia vital em mim que pega nesse grito e lhe dá esse sentido, ou se é esse grito que me faz entrar em contacto com a energia vital. Mas também não interessa. Oiço-o, gosto, e sinto uma força em mim a levantar-se. Acho que é um grito mais interior do que exterior, e não quero que se cale nunca.

1 comentário:

soy yo disse...

a tua alma vibra em consonância com a natureza, caro amigo.