
O meu médico não me deixa ficar muito tempo sem pensar em coisas boas. Por isso, aqui vai: o que é a beleza?
As coisas falam, acho que já tinha dito isso aqui. A linguagem das cores, das formas, das linhas, dos movimentos, etc., têm conteúdos, mensagens, que dizem coisas. Eu acho que a beleza é simplesmente a linguagem das coisas a falar de amor. E nós, como falamos inatamente essa linguagem, entendemos essa mensagem, mas chamamos-lhe beleza porque a nossa cabeça não atinge aquilo que estamos a "ler" com o coração.
Se olharmos para uma cara bonita, o que vemos? A harmonia das proporções, a suavidade da pele, os diferentes elementos parece que brincam uns com os outros cheios de alegria e de vida. O que é isso tudo senão, numa palavra, amor?
Por outro lado, o feio, o que é? No mesmo raciocínio, é a linguagem das coisas a falar-nos de falta de amor. Uma pessoa sem amor, e odiada, torna-se feia, não só porque não tem nem recebe cuidado, mas porque as suas expressões, feições, posturas, etc., começam a transmitir "desilusão", "tristeza", "desarmonia", etc.: falta de amor.
Acho que, para nós, há também outro elemento que entra nesses conteúdos comunicativos da beleza, para além do amor: é aquele que vem da natureza animal. Esses conteúdos podem dizer por exemplo: "força", "poder", "capacidade de sobrevivência", "agilidade", "auto-suficiência", e, ao longo dos tempos, esses significados foram sendo lidos por nós como beleza, por serem atributos desejáveis para um animal. Um exemplo disso é a beleza que vemos numa pantera ou num cavalo. Lemos esses traços como sendo beleza, porque, ao longo dos milénios e da formação das espécies, se "misturaram" com os conteúdos que originalmente falavam só de amor, e não de sobrevivência ou auto-suficiência.
Pois é. Eu acredito que, neste mundo, o amor puro está misturado de tal maneira com a falta de amor, que em alguns casos é quase impossível separar uma coisa da outra. A falta de amor serve-se muitas vezes da imagem do amor para transmitir beleza. É o caso, por exemplo, daquela beleza que vemos num avião-caça do exército: uma máquina que serve para matar, que serve para a guerra, no entanto, há qualquer coisa nas suas linhas, na sua harmonia, que é bela. Se a beleza vem do amor e a guerra vem da falta de amor, como pode isto acontecer? É o caso também da beleza duma mulher caprichosa e egoísta. Uma mulher que não é capaz de amar, que faz mal aos homens e tira prazer disso, mas que é muito bonita e atraente. Não será isso porque o amor e a falta de amor estão misturados nela, e porque a falta de amor, às vezes, se serve do amor para atraír e para sobreviver?
Da mesma maneira, muitas vezes achamos bonitas coisas que não são boas. Se, como eu acredito, a beleza, a vida, a felicidade, vêm do amor, e o feio, a morte, o sofrimento, vêm da falta de amor, como é que isto é possível?
Acho que a explicação é essa: a situação do Homem e da Natureza, nesta vida, é a da "mistura". É o que na Bíblia está muito bem ilustrado com a metáfora do trigo e do jôio. Estão misturados, e Deus deixa-os crescer juntos, para que não se corte o trigo juntamente com o jôio. Na altura da ceifa é que se voltam a separar. A ceifa é o momento da morte. Em nós, o bem e o mal, a beleza e o feio, a vida e a morte, o amor e a falta de amor, estão misturados, e essa mistura só poderá ser desmisturada numa vida futura, no Paraíso. Nessa altura, veremos claramente que o amor é a fonte de toda a beleza, e nessa altura, tudo o que é falta de amor será também horrivelmente feio. Será assim porque veremos a Verdade, e já não veremos as coisas misturadas. Ou nesta vida, se se atingir a santidade, que para mim não é mais do que ter desmisturado o trigo e o jôio em nós.
Esta mistura que acontece em termos de beleza, acontece também dentro de nós a vários níveis. Já que estamos na onda da religião, acontece muito quando tentamos tornarmo-nos "bons". Porque dentro de nós o bom e o mau também está muito misturado, e quando tentamos mudar as coisas dentro de nós para que fique tudo bom, acabamos por rejeitar coisas boas que estavam ligadas às más, e acabamos por promover coisas más que estão ligadas às boas.
Pois é, isto é um caso bicudo... Então como é possível a alguém que queira separar o trigo do jôio nesta vida, fazê-lo? Como pode alguém tornar-se bom, se neste mundo, e dentro de nós, o mau e o bom estão tão "interpenetrados"?
A minha resposta é: não pode. Só Deus pode fazê-lo em nós. O que nós podemos fazer é ter a humildade de aceitar que em nós as duas coisas estão misturadas, e ir tentando encontrar o melhor equilíbrio possível. É um caminho. E podemos, sobretudo, não tentar agir "como se fôssemos bons", ou seja, não tentar agir segundo um modelo exterior, ao qual tentamos corresponder. A bondade, assim como todas as coisas boas, só são autênticas se partirem de dentro de nós, se forem fruto duma descoberta pela prática. Se estão fora, não vale a pena fingir, isso só leva à falsidade, e a queimar o trigo (bem) juntamente com o jôio (mal). Só podemos ir descobrindo o que é ser-se bom experimentando e errando, aceitando o erro e tentando outra vez, de maneira a que a mistura que temos por dentro se vá desmisturando aos bocadinhos. Sem perfeccionismos, sem orgulhos, sem auto-condenações, e sem condenar os outros.
Mas isso é outra conversa, e este post já ficou comprido demais!!